Lilia Camargo, diretora clínica do HSPE

Minha visão na Diretoria Clínica do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE) foi a de que nós aqui no Brasil tivemos a sorte de acompanhar a progressão da epidemia da covid-19 na China e depois na Europa. Pudemos observar e aprender com os colegas de saúde dos outros países. O HSPE é um hospital terciário/quaternário que se organizou rapidamente para o enfrentamento à doença com a constituição do Comitê de Crise Covid-19 interno.

O acesso ao HSPE foi todo modificado para impedir aglomeração e reduzir a transmissão do novo coronavírus. Para isso, foram suspensas as cirurgias eletivas e os ambulatórios tiveram seu horário de funcionamento restringido. Apenas procedimentos inadiáveis ou tratamentos de doenças graves foram mantidos. Foi impressionante essa transformação orquestrada pela Diretoria Técnica conjuntamente com Comitê de Crise Covid-19. Quase que ao mesmo tempo, o Serviço de Moléstias Infecciosas realizou uma palestra sobre o novo coronavírus, a pandemia e os equipamentos de proteção individual (EPIs) e como usá-los adequadamente.

Para atendimento aos pacientes com sintomas gripais foi criado o Gripário, com o objetivo de proporcionar atendimentos mais seguros, evitando a transmissão da doença, atentativa era deixar o Pronto-Socorro (PS) para os pacientes sem sintomas gripais. O novo prédio teve seu funcionamento iniciado no dia 18 março. A abertura foi motivo de satisfação para todos os envolvidos. Ao longo do tempo, o fluxo do atendimento dos pacientes no Gripário foi estudado e aprimorado. Os doentes com sintomas e quadro clínico leves foram acompanhados por telemedicina e a busca ativa pelo grupo de apoio assistencial via sistema com análise das tomografias permitiu que os pacientes dispensados com quadro moderado fossem amparados pelo grupo de assistência domiciliar.

Com a queda do movimento cirúrgico houve a oportunidade de criarmos junto da equipe de anestesistas o Time de Resposta Rápida (TRR), que foi fundamental para evitar a transmissão da doença para a equipe de saúde. Os anestesistas propuseram também auxiliar na punção de acessos venosos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI). O trabalho desse time foi documentado durante todos esses meses e apresentado em reuniões do Comitê de Crise Covid-19.

A equipe da unidade de terapia intensiva produziu um manual descrevendo o atendimento em tempo correto da insuficiência respiratória que o novo coronavírus provoca que, curiosamente, não é acompanhado da sensação de falta de ar. O serviço de Moléstias Infecciosas, junto dos Serviços de Doenças do Aparelho Respiratório (DAR), Clínica Médica, Alergia/Imunologia criaram protocolos conjuntos para o atendimento desses pacientes. A equipe de enfermagem criou vários e importantes documentos semelhantes.

Esses meses foram de muito aprendizado prático de como a covid-19 se comporta, conteúdo que permitiu implementar medidas para que nossos pacientes não ficassem tão graves. Para isso, usamos racionalmente corticosteroides, anticoagulantes, medidas intensivas de suporte respiratório nas UTIs, entre outros protocolos.

Com o aumento do número de pacientes internados nas enfermarias e UTIs covid-19 foi necessária a ajuda de mais médicos para assistir aos pacientes. A partir de abril de 2020, como diretora clínica, assumi, inicialmente com a ajuda de colegas médicos do Comitê de Crise Covid-19, a delicada tarefa de fazer a escala dos médicos para plantões de colaboração nas alas do HSPE dedicadas à assistência de pacientes com o novo coronavírus.

Hoje, olhando para trás, temos certeza que as estratégias de combate à pandemia do HSPE foram embasadas nas melhores evidências científicas. A gestão do Comitê de Crise Covid-19 foi cautelosa e certeira, além disso, todos os profissionais do Hospital fizeram o seu melhor para auxiliar no enfrentamento a essa crise sanitária.

Foi difícil lidar com a covid-19,pois sabíamos pouco sobre o novo coronavírus, nossa experiência prática era zero. Os coronavírus foram objeto de epidemias locais em 2012, no Oriente Médio (MERS – Midle East Respiratory Syndrome) e anteriormente em 2002, em outra província na China (Sars-Cov – Severe acute respiratory Syndrome). Nenhuma destas duas epidemias locais se tornou uma pandemia. O que tinha de diferente com o Sars-coV2? Porque era tão transmissível? A maioria dos pacientes acometidos é assintomática. Já os casos graves entram em insuficiência respiratória, precisam de cuidados nas UTIs, podem desenvolver falência de múltiplos órgãos, têm longa internação e a mortalidade varia de 50 a 60%.

Desta forma, acredito que todos os médicos e os profissionais de saúde tinham muita apreensão. No início, por não termos a prática de como cuidar de pacientes com a Covid-19, e hoje, porque ainda não dispomos de medicação. A comunidade mundial da Medicia está construindo o conhecimento sobre essa doença, que surgiu no fim de 2019.

Apreensão semelhante foi a que sentimos em 2009, quando ocorreu a pandemia da influenza, mas, nessa ocasião tínhamos uma medicação eficaz e a vacinação. Igualmente nos anos 80, quando se iniciou a epidemia do vírus da Imunodeficiência adquirida, o HIV, – desconhecido e assustador! Assim como essas, a da Covid-19 também causa temor em nós. E se a contrairmos, como nosso corpo responderá, de forma assintomática, leve ou grave?E será que a transmitirei para os colegas de profissão ou para os familiares e pessoas próximas?

Eu, particularmente, acalmava-me quando dava plantões nas enfermarias dos pacientes com covid-19, pois aí era o real, não a imaginação, o temor. Pude constatar que muitos pacientes, apesar de ter uma forma moderada da doença com necessidade de internação e monitorização, melhoravam e recebiam alta hospitalar.

Como médica, o fervilhamento de conhecimentos entre todos os serviços, a busca de evidências científicas robustas, a troca de ideias e a busca de soluções, ajudava-nos anos manter no caminho do real, daquilo que tem evidência e comprovação científica. Esse pensamento nos fez desenvolver protocolos de tratamento nas enfermarias e nas UTIs.

A primeira vez que tive a oportunidade de colaborar com os colegas da unidade intensiva do HSPE foina assistência dos pacientes com as formas graves da doença. Aquele momento foi de extrema tristeza e até depressão. Os quadros críticos da doença são devastadores, porém foi de esperança a condução firme no tratamento. Oferecer o suporte intensivo bem-feito com indicação precisa da manobra de pronação - virar o paciente de bruços para que os pulmões mandem oxigênio suficiente para o corpo– exige de toda a equipe de profissionais da UTI, enfermagem, fisioterapeutas e médicos um alinhamento perfeito. Foi maravilhoso participar da atuação dos colegas da UTI. Deu muito orgulho pertencer ao HSPE!

A comunicação com os familiares dos pacientes também foi se desenvolvendo de forma exitosa. A parceria da comunicação dos serviços de paliativos nas UTIs para troca de informações do estado clínico dos pacientes graves a seus familiares foi muito acolhedora e humana. Não podemos esquecer também da organização da Geriatria, que foi maravilhosa no cuidar dos pacientes com “80 anos e mais” acometidos pelo vírus e no excelente alinhamento com os familiares. E não é possível deixar de mencionar todos os médicos colaboradores que aceitaram o desafio de auxiliar na assistência aos doentes, independentemente de sua especialidade.

Quanto à pandemia e todas as modificações sociais e econômicas que ela causou nos faz pensar no que vale a pena ou não nesta vida. Cabe questionar o mar de informações desencontradas que nos empurra a ter fé em soluções mágicas. O negacionismo da gravidade da doença e da crise sanitária são assustadores. Por outro lado, as ações fraternas pipocaram na sociedade e trouxeram esperança. Estamos mais despojados e com oportunidade de refletir sobre práticas da vida diária antes da pandemia

A todos os médicos e profissionais de saúde do HSPE, envolvidos de alguma forma na assistência aos pacientese que nos permitiu chegarmos até aqui, tenho muito a agradecer, porque cada um fez a parte que lhe cabia da melhor forma possível.

Temos enfrentado de modo favorável a pandemia. Porém, também temos que continuar alerta na ampliação cautelosa da assistência habitual dos serviços do HSPE, fazendo testagem e monitoramento de todos os pacientes que internam, para impedir a transmissão do vírus. Por isso, é importante mantermos o distanciamento social, utilizar os equipamentos de proteção individual (EPIs), higienizar frequentemente as mãos com água e sabão ou com álcool 70%.

Por fim, todos nós estamos cansados. Temos que “despressurizar para não desmontar”, frase bem colocada numa das primeiras reuniões do Comitê de Crise Covid-19 pelo Dr. André Sugawara, vice-coordenador do Comitê, que trouxe a expertise dos “capacetes azuis” - tropas multinacionais que servemnas Forçasde Paz da ONU para a resolução de conflitos internacionais em países envolvidos em conturbação social. Afinal, a pandemia é uma conturbação social a nível mundial! Portanto, peço a todos que despressurizem, tenham a disciplina de terem momentos para descansar. Só então teremos condições de continuar com serenidade e clareza para que sejamos capazes de tomar as melhores decisões na condução da vida pessoal e profissional.

Governo do Estado de SP